Congresso Pernambucano de Clínica Médica

Dados do Trabalho


Título

LIPODISTROFIA HEREDITÁRIA DIAGNOSTICADA NA QUARTA DÉCADA DE VIDA COM COMPLICAÇÕES METABÓLICAS E A IMPORTÂNCIA DO RECONHECIMENTO PRECOCE: UM RELATO DE CASO

Introdução/Fundamentos

Introdução:
As lipodistrofias são doenças adquiridas ou hereditárias, clinicamente heterogêneas, caracterizadas pela perda seletiva de tecido adiposo, generalizada ou parcial. As pessoas afetadas estão predispostas à resistência à insulina e às complicações decorrentes, tais como, diabetes mellitus, dislipidemia, esteatose hepática e acantose nigricans. No caso das mulheres, há aumento do risco de hirsutismo, oligomenorreia e mesmo da síndrome dos ovários policísticos. 6
Os dois fenótipos mais comuns observados entre os pacientes com lipodistrofias genéticas são: a perda generalizada de gordura corporal que ocorre ao nascimento, chamada de lipodistrofia generalizada congênita (LGC, síndrome de Berardinelli – Seip) ou a lipodistrofia parcial familiar tipo Dunnigan ( FPLD 2 ), geralmente iniciando mais tarde durante a infância ou puberdade, chamada de lipodistrofia parcial familiar1.

A FPLD 2 é uma doença autossômica dominante e rara resultante da mutação heterozigótica no gene LMNA, que está envolvido na transcrição de genes relacionados a diferenciação dos adipócitos.Caracterizada por progressivo desaparecimento do tecido adiposo subcutâneo em membros, região glútea, abdome e tronco, com início no período puberal ou logo após a puberdade. A lipoatrofia em tais regiões é acompanhada pelo acúmulo de gordura na face, queixo, pescoço, dorso e região intra-abdominal , simulando o fenótipo da síndrome de Cushing e uma aparente hipertrofia muscular, mais rapidamente identificada em pacientes do sexo feminino2,3.

Há aumento da predisposição à resistência à insulina e às suas complicações, que incluem, intolerância à glicose; diabetes mellitus, hipertrigliceridemia, redução do HDL-colesterol, elevação da pressão arterial, hiperuricemia, esteatose hepática e a aterosclerose, com aumento do risco de doença cardiovascular 3,4,6.
A terapia atual visa prevenir e tratar as complicações da síndrome lipodistrófica, visto que não há tratamento específico para esta doença. É importante ressaltar o vínculo prognóstico com a época da instalação e gravidade dos distúrbios metabólicos, os quais, podem ser controlados por mudanças no estilo de vida, pelo uso de sensibilizadores de insulina, que incluem a metformina e as tiazolidinedionas, que tem a pioglitazona como representante, e possivelmente pela reposição subcutânea de leptina 7,8.

Objetivos

O objetivo deste relato de caso é salientar a importância da suspeição clínica da síndrome lipodistrófica e ressaltar a importância do diagnóstico precoce com suas implicações terapêuticas, após consentimento livre e esclarecido, relatamos um caso de fenótipo típico.

Descrição do Caso

Mulher, 41 anos, parda, procedente de Jaboatão dos Guararapes, encaminhada ao ambulatório de endocrinologia do Hospital Memorial Jaboatão, para seguimento de diabetes diagnosticada aos 37 anos, hipotireoidismo a cerca de oito anos e hipertensão arterial sistêmica. No momento fazia uso de: metformina 2,5g/dia, glibenclamida 5 mg/dia, ciprofibrato 100 mg/dia, hidroclorotiazida 25 mg/dia e sinvastatina 20 mg/dia.Durante a anamnese, foi relatada dificuldade em perda de peso, mesmo com adoção de dieta e atividade física,além de astenia,polifagia,poliúria e labilidade de humor.
Quando interrogado sobre o ganho ponderal informou um ganho de oito quilos em seis meses. Referia aumento de volume abdominal, tronco, pescoço e face, além de aumento da gibosidade de forma importante. Referiu ainda, irregularidade menstrual desde a adolescência até a idade adulta, com dificuldade para concepção. A menarca ocorreu aos 14 anos seguindo com ciclos menstruais irregulares e perda progressiva de tecido adiposo em extremidades e acúmulo importante em face. Antecedente com duas gestações sem intercorrências, no entanto, com intervalo de dez anos. Atualmente em uso de DIU de cobre. Quando questionada sobre fenótipos familiares semelhantes, relatou que genitora apresenta as mesmas características e diversas complicações cardiovasculares, com infarto agudo do miocárdio (IAM), sendo três eventos em idade precoce.
Ao exame físico apresentava peso e índice de massa corporal respectivamente 104 kg, 39,63 kg/m². Notou-se perda de tecido adiposo subcutâneo em glúteos e extremidades, com exposição da musculatura, pseudo hipertrofia de panturrilhas
e aparente flebomegalia . Havia acúmulo de gordura em região de tronco, pescoço e face, com aparência cushingóide, além da presença de acantose nigricans em pescoço e axilas. O abdome era globoso com muitas estrias, porém, não violáceas e finas e sem protrusão de cicatriz umbilical, não sendo evidenciado visceromegalias. A pressão arterial era de 150 x 90 mmHg,
em uso de medicações. Durante acompanhamento ambulatorial foram realizados exames complementares e ajuste de terapia medicamentosa.
Exames laboratoriais realizados no início da investigação evidenciaram glicemia de jejum 229 mg/dl, colesterol total 162 mg/dl, triglicerídeos 484 mg/dl, função tireoidiana ( TSH 0,76μUI/mL, T4L 0,9ng/dL e T3 0,9ng/dL ) ácido úrico 6,3 mg/dl, função renal ( Ur 33mg/dl e Cr 0,7 mg/dl) TGO 26 U/L, TGP 31 U/L. Ultrassonografia de tireoide com textura heterogênea e ausência de nódulo. Ultrassonografia de abdome apresentando esteatose hepática moderada.
Durante seguimento clínico paciente apresentou variação de peso inicialmente com redução e retorno do aumento de peso em registros de consultas ambulatoriais com peso, índice de massa corporal, cintura, quadril e pescoço atuais, respectivamente 99,5 kg, 37,5 kg/m², 114 cm, 114 cm e 45 cm. A ultrassonografia abdominal sequencial persiste com esteatose hepática moderada com ausência de visceromegalias ao método. Em Ultrassonografia de rins e vias urinárias foi observado cálculo não obstrutivo de 0,6 cm à direita sem hidronefrose e a investigação de litíase renal não foi confirmada em tomografia de abdome total realizada posteriomente. Houve resposta quanto aos exames laboratoriais após ajuste de terapia farmacológica ,com glicemia de jejum 107 mg/dl, hemoglobina glicada 6,4 mg/dl, função tireoideana( TSH 8.2 μUI/mL T4L 0.7ng/dL), colesterol total 138 mg/dl, triglicerídeos 138 mg/dl HDL 49 mg/dl LDL 61.4 mg/dl, TGO 21 e TGP 15, atualmente em uso de metformina 1000mg/d, losartana 100 mg/d, levotiroxina 150 mcg/d, sinvastatina 20 mg/d, dapagliflozina e metformina 5/1000 mg/d e fluoxetina 20mg/ e pioglitazona 30 mg. Segue com bom controle pressórico (PA 127 x 75 mmHg).
O diagnóstico é amplamente baseado na história clínica e exame físico. A avaliação da composição corporal e os achados laboratoriais complementam a caracterização. Foi solicitado dosagem de cortisol sérico após teste com 1 mg de dexametasona com resultado inferior a 0,4 Ⲙg/dl (VR 6,7 - 22,6 Ⲙg/dl), para afastar a possibilidade de Síndrome de Cushing. A avaliação da composição corporal com a densitometria de corpo inteiro evidenciou: índice de massa corporal 37,3 kg/m7; massa gordurosa total 38.323g; massa de gordura em pernas de 6.558g ; percentual de gordura corporal total = 40,3%; taxa andróide/ginóide =1,51; Razão de massa de gordura
tronco/membros =2,53, Índice de baumgartner =9,33; percentual de gordura de tronco de 47.8% e percentual de gordura em pernas de 26.3%. A paciente apresenta alguns parâmetros sugestivos da Lipodistrofia parcial familiar: A razão de percentual de gordura em tronco por percentual de gordura em pernas: 1.817 e a razão entre a massa gorda das pernas em gramas por massa gorda total em gramas de 17,11%. A pesquisa genética, em busca do sequenciamento direto do DNA da mutação é realizada em alguns centros de referência em pesquisa, houve contato prévio com equipe responsável, no entanto, o processo do caso ainda está em andamento.

A lipodistrofia parcial familiar é um grupo de doença rara, a qual envolve diminuição de tecido adiposo parcial ou generalizado, sem evidência de privação nutricional e afeta aproximadamente 2,84 casos/milhão de pessoas mundialmente,resultando na lipodistrofia. Podem ser classificados de acordo com a forma de aquisição (genética ou adquirida) e quanto a distribuição da deficiência adiposa (generalizada ou parcial)16.Quatro subtipos principais: GLD congênita (CGL), GLD adquirida (AGL), PLD familiar (FPLD) e PLD adquirida (APL).A lipodistrofia parcial familiar (LPF) ou familial partial lipodystrophy (FPLD) é um diagnóstico diferencial importante com outras comorbidades por apresentar perfil semelhante à síndrome metabólica, diabetes mellitus tipo 2 e hipertrigliceridemia 1.
As lipodistrofias parciais familiares são doenças autossômicas dominantes, com vários fenótipos distintos, com a variedade de apresentação,muitas vezes leva a longos atrasos no diagnóstico. Oito subtipos de lipodistrofias parcial familiar, já foram relatadas, entre os genes relacionados, apresentam-se : LMNA e PPARG1. O mais prevalente, com mais de 200 casos relatados na literatura, foi originalmente descrito por Dunnigan6.

A síndrome de Dunnigan, ou LPF do tipo 2, possui uma etiologia molecular associada a variantes predominantemente de troca de sentido do gene LMNA no cromossomo 1. O cromossomo 1q21-22,57 levou à identificação de uma mutação missense no gene que codifica as lâminas A e C ( LMNA ) em membros afetados de uma linhagem canadense14.
A perda de adipócitos, pode ser resultante de mutações no LMA por interrupção de função nuclear. Sendo assim, leva a morte celular prematura e suspensão dos fatores de transcrição 15. As diferenças na perda de gordura de forma regional, entretanto, permanecem em estudo, pois não foram observadas diferenças na expressão das lâminas A e C nos adipócitos do omento e das regiões subcutâneas do abdome e do pescoço.
A síndrome costuma ser mais precoce, começa na puberdade e é mais reconhecida no sexo feminino, em sua maioria por consequência , do fenótipo de hipertrofia muscular, embora estudos de composição corporal demonstraram similar perda de tecido gorduroso subcutâneo entre mulheres e homens nas extremidades com redução variável no tronco9.
A perda de tecido adiposo pode resultar em uma diminuição nos níveis de leptina,o que altera sinais de fome, saciedade e por consequência leva à hiperfagia17.

O excesso de calorias é armazenado como gordura no fígado e no tecido muscular, consequentemente, resistência à insulina, hipertrigliceridemia ( às vezes grave, com pancreatite aguda associada). Esteatose hepática, risco aumentado a doenças cardiovasculares e síndrome do ovário policístico (SOP), assim como, complicações obstétricas (diabetes gestacional, natimorto e aborto espontâneo).O tecido adiposo é responsável pelo armazenamento de energia do corpo em células especializadas no citoplasma para armazenar triglicerídeos (TG). As células do adipócitos são capazes de sintetizar ácidos graxos em triglicerídeos e quando em excesso,são transportados, pelo mecanismo chamado de lipólise. São regulados por nutrientes, comandos neurais e hormonais por necessidade de cada indivíduo. Os principais hormônios envolvidos são; leptina, grelina, adiponectina, resistina e catecolaminas18,19.
Estudos mostram que o fenótipo que é o objetivo deste relato caracteriza-se por aparente hipertrofia muscular e acentuada desproporção da gordura subcutânea. O mais prevalente,com mais de 200 casos relatados, principalmente entre pacientes de origem europeia, foi originalmente descrito por Dunnigan et al 11 A distribuição da gordura corporal é normal durante a infância, mas com a puberdade, a gordura subcutânea desaparece gradualmente dos braços e pernas, evidenciando uma aparência muscular.11 A perda variável e progressiva de gordura do abdome anterior e do tórax ocorre mais tarde 12

É importante ressaltar que o diagnóstico é clínico com exame físico completo, revela topografia assimétrica de deposição de tecido adiposo, aumento de musculatura, flebomegalia, e sinais de resistência insulínica. A antropometria, dobras cutâneas e relação cintura-quadril e medidas objetivas de adiposidade, a exemplo da densitometria e ressonância de corpo inteiro, também são utilizadas para apoiar o diagnóstico por revelar perda de gordura subcutânea, mas aumento de gordura intermuscular nos braços e pernas e excesso de gordura intra abdominal 12
A apresentação clínica tem diagnóstico diferencial com a síndrome de Cushing, sendo necessária a exclusão para diagnóstico assertivo e melhor escolha de tratamento 19
Os níveis séricos de leptina tendem a ser baixos ( em níveis absolutos e relativos ), no entanto ,não há definido o nível sérico de leptina para confirmar ou afastar o diagnóstico. A análise genética é recomendada incluindo sequenciamento único ou de um painel de genes candidatos ou sequenciamento de todo o genoma,para orientar a triagem e o aconselhamento adicionais, embora um resultado negativo não consiga excluir as síndromes lipodistróficas. 20

Com base na revisão bibliográfica, o tratamento tem se mostrado desafiador, e é focado no controle de alterações metabólicas e prevenção de possíveis complicações. Mudanças de estilo de vida, com exercício físico e dieta com baixo teor de gordura e teor glicêmico são recomendadas, entretanto, não há estudos que avaliem o impacto direto em pacientes com lipodistrofias 20. Em relação ao manejo da hiperglicemia, os sensibilizadores de insulina são opção de tratamento, a metformina é a terapia de primeira linha, as tiazolidinedionas (TZDs), como pioglitazonas, são agonistas diretos dos receptores PPARγ, levando à melhora da sensibilidade à insulina e à conversão da gordura visceral e subcutânea, tem sido utilizada em coadjuvância 21. Alguns estudos demonstraram melhora de marcadores metabólicos, como hiperglicemia, dislipidemia e hiperandrogenismo, enquanto outros demonstraram aumento da adiposidade global devido ao acúmulo de gordura em áreas não lipoatróficas, sendo necessária individualizar os pacientes com critérios de inclusão.21

Estudos recentes apresentaram dados preliminares sobre o uso de agonistas do receptor do peptídeo 1 semelhante ao glucagon (GLP1) e inibidores do co-transportador sódio-glicose 2 (SGLT2), dapagliflozina, têm mostrado resultados promissores com redução nas necessidades totais de insulina e melhora no controle glicêmico 21.

O uso de um análogo da leptina humana, a metreleptina, foi aprovado nos EUA, em 2014, para pacientes com lipodistrofia generalizada congênita ou adquirida e também é aprovado no Japão para o tratamento de diabetes e/ou hipertrigliceridemia em pacientes com lipodistrofia congênita ou adquirida (generalizada ou parcial). Em 2018, a metreleptina foi aprovada na União Europeia, para adultos e crianças com idade ≥12 anos com lipodistrofia parcial (familiar ou adquirida) para os quais os tratamentos já propostos não alcançaram metabolismo adequado com evidências sugerindo melhora do perfil metabólico, saciedade, função reprodutiva e autopercepção.22,23

Conclusões/Considerações Finais

O caso relatado, portanto, reforça a necessidade de atenção ao diagnóstico precoce da lipodistrofia parcial familiar para a prevenção de distúrbios metabólicos graves e hiperandrogênicos vinculados à desordem. O tratamento dos pacientes tem se mostrado promissor para controle de complicações com melhora do perfil metabólico, saciedade e no estigma social associados aos efeitos psicológicos negativos e na autoestima .

Área

Tema Livre

Instituições

AFYA- FACULDADE CIÊNCIAS MÉDICAS DE JABOATÃO - Pernambuco - Brasil

Autores

NATHALIA TORRES BRAZ